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Dos Rugidos ao Diamante

  • Writer: cassiamartinsbook
    cassiamartinsbook
  • Sep 24
  • 3 min read
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Hira caminhava sobre o gelo.

Caminhava, caminhava; passos firmes, porque seus pés haviam sido talhados na Cidade da Pedra.

A aspereza das montanhas a tinha ensinado a resistir, e ela acreditava que essa dureza bastaria para enfrentar o frio severo do Norte.


Deixara para trás todas as pedras que um dia possuíra.Ficaram na Cidade da Pedra, guardadas em silêncio.Trouxera apenas uma consigo, pois era verde como suas outras pedras fluorita e como as Luzes do Norte que buscava, mas também atravessada por lâminas lilás que riscavam o interior da pedra como gumes de vento; cortes delicados que lembravam que toda beleza também fere.


Hira seguiu sobre o gelo, certa de que seus pés, acostumados às arestas vivas das pedras, a sustentariam.Mas havia em seu corpo um peso mais duro que as asperezas da travessia: seu coração desmedido, que pulsava como a própria seiva da existência, tronco pesado como cedro que o corpo frágil não podia conter.


E assim como o excesso lhe dava vida, também era fardo.

Nem mesmo a lembrança da fluorita — promessa de que a vida não cessa — aliviava o peso.


Então, na vastidão branca, a fadiga venceu.

Hira tombou sobre a neve, o peito arfando em silêncio.Seu coração ainda batia, mas tão fraco, tão distante, que parecia já fora dela.


E pra Hira então seu coração se calou.

O mundo, escuro, havia se fechado sobre ela.

Então veio o rugido.Um raio, uma descarga.E o coração de Hira, já apagado, não pôde deixar de se atravessar por aquele brado selvagem.Naquele mesmo instante, seu peito estremeceu.


Bateu. Só uma vez.

Depois caiu de novo no silêncio.


Outro rugido.

Outra descarga.

Mais uma batida.

Mais uma queda.


A vida regressava em solavancos, depois se apagava de novo.

Hira oscilava entre vida e morte, como se o eco indomável daquele rugido fosse também o sopro do seu próprio coração; como se desde sempre, guardasse em si um fragmento desse pulsar.


E cada vez que rugia, reclamava o que era dele: trazia seu coração de volta.

Ela não sabia se ainda vivia ou se já morrera, apenas sentia o chamado: rugido, batida, silêncio.

Rugido, batida, silêncio.


Até que os rugidos não cessaram mais, e o coração, vencido pela insistência, permaneceu.

Pesado, irregular, mas vivo.


E foi nesse retorno que Hira começou a perceber o mundo ao redor.


Primeiro veio o cheiro: denso, metálico, quente demais para a noite gelada.

O sangue abria seu vapor sobre a neve, e esse hálito de ferro queimava-lhe as narinas.


Depois, os sons.

Rosnados curtos, estrangulados, notas agudas de medo, de desespero.Eram os guinchos covardes de um coiote, rangendo na garganta como ossos prestes a partir.O som da presa que já não caça, mas implora.


O ar tremia com a luta ao seu lado.

Entre cada batida do coração, Hira escutava o estalar da carne sendo rompida, o choque dos corpos no gelo.

Era brutal, inescapável.


Ela não sabia o que era; só sabia que não havia como resistir àquilo.

E, deitada na neve, entendia que o mesmo rugido que lhe devolvera a vida agora despedaçava a morte diante dela.


Lembrou-se então das palavras da mãe:

“Os leões não velam — devoram.”


O sangue gelou-lhe nas veias.

Se fosse um leão quem rugia, talvez não parasse no coiote.

Talvez ela fosse a próxima.

E quando os últimos rugidos se extinguiram, o silêncio também avançou; como força que detém.

Calou o ar, calou a luta, calou até o medo; mas não calou seu coração.

Esse agora batia como tambores solitários no deserto da neve.

E só o vento voltou a correr sobre o gelo.


Hira não ousava abrir os olhos, temendo ver a sombra se voltar contra ela.

Mas o ar trazia outra certeza: do coiote restavam apenas a marca da carne despedaçada, o rastro quente da violência que se extinguia.


O coração de Hira batia descompassado, e foi nesse compasso incerto que um lampejo a chamou.

Entre as manchas de sangue, algo brilhava.Um ponto de luz cristalina, impossível de ignorar.


Engatinhou pela neve, fraca, trêmula, e quando alcançou o brilho viu que era sua pedra.

A fluorita verde, atravessada de lilás, já não era mais a mesma.

Estava clara, dura, como um diamante bruto, coberta de sangue que a luz da lua fazia cintilar.


Hira a tomou nas mãos.

Para qualquer outro, seria apenas mineral manchado.

Mas para ela, aquele sangue era sacrifício; o preço doce da vida que lhe fora devolvida.


Ergueu os olhos.

E no horizonte, duas brasas ardiam na escuridão, fitando-a.

O mesmo poder que despedaçara a morte agora se revelava como presença inevitável.


No íntimo, sem palavra aprendida, ela o nomeou:

Lior. Minha Luz.


E ao chamar, os olhos moveram-se em sua direção.

 
 
 

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© 2017 - 22 Cassia Peralta.

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