Hira, a Leoa e as Luzes do Norte
- cassiamartinsbook
- Sep 20
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Hira nascera na Cidade da Pedra. Nas ruas estreitas e íngremes aprendeu cedo o peso da dureza: não havia mar a abrir horizontes, apenas montanhas talhadas em rocha bruta. Crescer ali era acostumar-se às arestas cortantes. Seus pés tornaram-se grossos, resistentes; solas de guerreira talhadas no atrito da rocha. Conhecia cada pedra: as que firmavam o passo, as que rasgavam a pele, as polidas, as irregulares. Foi desse chão áspero que ergueu a sua fidelidade.
Foi ali, quando tinha apenas cinco anos; pequena demais para que alguém acreditasse na sua força, que lhe apareceu a Leoa. Era uma manhã comum, mas as montanhas pareciam pesar mais do que o céu.
A Leoa aproximou-se como se sempre tivesse sido sua guardiã. Trazia porte real: olhos de fogo, juba a brilhar como sol escondido, respiração que fazia tremer a terra. Mas ao abrir a boca, não rugiu. Disse apenas:
— Percebo-te, Hira.
O encontro pareceu inevitável, como se a pedra chamasse o rio e o rio chamasse o mar. A Leoa era mais do que uma Leoa; era Rainha, não por sangue apenas, mas pela gravidade da sua presença. O olhar ia longe, e ao pousar em Hira reconheceu o que outros nunca tinham notado: uma realeza silente.
A Leoa carregava um peso que a prendia à terra; uma jaula invisível da qual nunca saíra. A sua vida fora prisão dourada: belas filhas, leoas solares feitas para reinar de dia. E quando seus olhos encontraram os de Hira, percebeu outra coisa: o compasso de um coração que soava diferente, uma batida que só predadores sabem ouvir.
Por isso disse a Hira que não ficasse. As palavras chegaram suaves, mas o silêncio em redor pesava como o círculo de uma leoa na escuridão. Se era aviso ou ameaça, Hira não saberia dizer.
Não falou de reinos próximos nem de caminhos fáceis. Sussurrou a lenda das Luzes do Norte:
— Imagina — disse a Leoa — uma pedra como a fluorita a libertar-se da terra. Brilha em verdes e púrpuras que nunca se fixam, movem-se como véus, como se o céu respirasse dentro dela.
E então contou o mito:
— Houve um tempo em que as auroras desciam à terra para dançar entre os homens. Eram véus vivos, mas a beleza delas era tamanha que alguns quiseram possuí-las. Congelaram um sopro de aurora dentro das pedras, e assim nasceram as fluoritas. Desde então, quem segura uma vê nelas o reflexo do céu aprisionado: memória de algo que pertence ao alto. Mas a beleza cativa é apenas sombra. As verdadeiras Luzes não cabem nas mãos; só no céu podem ser inteiras.
— Quando as olhares soltas, dançando outra vez no firmamento; concluiu a Leoa, saberás que o mundo é maior do que esta montanha.
A fluorita sempre fora a pedra preferida de Hira. Vira-a pela primeira vez no dia em que nasceu, quando a parteira lhe colocou uma nas mãos. Não como adorno, mas como presságio. Verde e púrpura dançavam nela como se guardasse um céu próprio. Desde então, diziam que Hira nascera com um coração desmedido; maior que o corpo, maior que a montanha que a confinava. Um coração vasto o bastante para conter dor e luz; pesado o suficiente para atrasar-lhe os passos. Às vezes elevava-a, às vezes traía-a.
Assim Hira aprenderia que o dom era também fardo: o peso que a fazia brilhar era o mesmo que a fazia tropeçar. O que significava que a sua vida nunca poderia ser ignorada.
Para ela, a fluorita não era apenas pedra; era a primeira medicina do coração. O verde sussurrava equilíbrio quando o pulso disparava; o púrpura, calma quando a tristeza ameaçava afogá-la. A pedra não encolhia o coração, nem o protegia de todas as feridas; mas mostrava-lhe que mesmo na desmesura havia ordem possível.
A Leoa sabia. Ao comparar as Luzes do Norte à fluorita, ofereceu-lhe uma chave simbólica. Não disse: “Vai, porque deves.” Disse:
— Vai, porque o teu coração merece ver pedras de luz.
Mas âncoras pesam. E quando chegou a hora de atravessar o oceano, até a medicina se tornou fardo. A Cidade da Pedra e todas as fluoritas que possuía já não a podiam prender. Para alcançar as Luzes; as pedras ardendo no céu, teve de pousar as que tinha nas mãos.
E assim Hira entendeu: não podia levar todas as pedras consigo. A fidelidade à terra estava-lhe no sangue e permaneceria, mesmo para lá do mar. Mas atravessar oceanos exigia largar peso.
A Leoa, que não conseguira partir, libertou-a com essa história. E Hira — filha da rocha bruta, acostumada a caminhar sobre lâminas de pedra, já sabia.
Em casa, contou à mãe o que tinha visto. Mas a mãe não acreditou. Disse-lhe apenas:
— Leões são traiçoeiros. Aproximam-se de ti só para depois atacar.
Hira portanto nunca mais voltou a falar de leões. Mas a imagem da Leoa permaneceu, gravada com fogo na memória da filha.
Desde esse dia, a visão da aurora boreal ficou marcada na alma de Hira. Tão forte que, ao atravessar pântanos, cidades traiçoeiras e mares, o peso do perigo não a esmagaria.
E quando a Xamã cruzou seu caminho; senhora das raízes e da lama, Hira a seguiu. Mas a lama não tinha passo, o terreno se dissolvia, e a Xamã desapareceu no horizonte. Então, sozinha, Hira entendeu: o caminho já não estava sob os pés de outra, mas sob os dela. Restava-lhe seguir a visão que lhe fora dada.
Seguiu para o Norte. O gelo estendia-se sólido, e, acostumada desde sempre ao chão de pedra bruta, não se intimidou com a aspereza do frio. Seus pés grossos, talhados na rocha, agora a sustentavam no gelo.
Assim, guiada pela lenda e pela claridade, no branco do gelo, uma sombra se movia: rondava em círculos largos, sombra quente na noite fria. Não era vento, não era pedra. Era um Leão, silencioso, rondando seus passos à distância.
Hira não o via; mas já caminhava sob o olhar de um destino que a vigiava. E assim Hira caminhou em direção às Luzes do Norte.
O gelo estendia-se sob seus pés e embora seus olhos não o alcançassem, o encontro já ardia no horizonte.



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