O Conto de Hira
- cassiamartinsbook
- Sep 16
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Hira não era da Noruega, mas foi lá que encontrou seu destino. Tinha chegado às terras geladas como estrangeira, e, por caminhos que só o acaso explica, cruzou-se com o príncipe do reino. Ele lhe ofereceu promessas de futuro, de vida entre fiordes e palácios, e por algum tempo ela acreditou que a sorte a havia escolhido.
Mas então veio o mar. Uma onda sem medida atravessou a costa, um tsunami que arrastou barcos, moedas, lembranças, e deixou atrás apenas lama e silêncio. As ruas de pedra desapareceram, as casas se desfizeram em ruínas, e todo o reino parecia reduzido a um campo devastado.
Foi nesse cenário que o príncipe a procurou. Ainda vestido com insígnias reais, ainda com sua postura altiva, ele dizia que não havia mais nada a fazer. “Vamos embora”, insistia, “aqui nada resta”. Para ele, o trono só valia se houvesse brilho; sem súditos, sem estabilidade, não havia por que ficar.
Hira, porém, olhou em volta. Nos olhos invisíveis dos sobreviventes, na lama que guardava mais do que destruição, ela sentiu o peso da escolha. Fugir seria fácil, mas não era certo. Não se abandona um povo quando o chão cede. Não se abandona uma terra quando ela precisa ser reconstruída.
Chamavam seu senso de dever de ingenuidade; sua própria mãe, em memórias antigas, sempre zombara de sua compaixão. Seu pai só aparecia em sonhos de conveniência, sorrindo apenas quando ela estava ao lado do príncipe. Mas bastava ela pensar em resistir, e essas figuras desapareciam como fumaça.
Ali, entre ruínas e gritos, ela entendeu. Sua coroa não seria de ouro, mas de barro. Na lama, ela seria arquiteta de uma ponte invisível; ponte feita de coragem e de palavra, para que outros pudessem atravessar.
O príncipe, cansado, partiu. Hira ficou. E na solidão da Noruega devastada, ela descobriu sua verdadeira realeza: não a que foge diante da tormenta, mas a que permanece, mesmo coberta de lama, para que um dia, quando a água baixar, haja terra firme onde todos possam caminhar.
Hira e a Marina de Lama
Depois da onda devastadora, o mundo ficou coberto por barro. O tsunami levara consigo palácios, casas, pontes; e os que tinham ouro e pressa fugiram, escondendo-se em castelos de pedra na Itália. Até o príncipe, que deveria guardar seu reino, abandonou tudo e correu. O pai de Hira não voltou, a mãe também se ausentou, cada um cuidando de seus próprios interesses.
Hira ficou. Não por sangue, não por títulos, mas porque sabia: sob a lama ainda havia vida. Eram muitos os que estavam soterrados, esmagados pelo peso da terra molhada. Outros, poucos, boiavam na lama espessa; não por força de riqueza, mas por terem um coração nobre, leve o bastante para não afundar.
Hira tentou ajudá-los, mas ainda se sentia fraca. Estava à deriva, sem saber como se erguer ou como erguer os outros. E foi nesse instante, quando o barro ainda se assentava e o sol parecia apagado, que ela a viu.
Lá adiante havia uma marina. Não haviam pessoas, mas só a enseada: porto secreto para barcos cansados. Um abrigo em meio ao nada. Hira sentiu que precisava chegar até lá.
Ela nadou. Mas nadar em barro não é como nadar em água clara. Cada braçada era uma luta, cada fôlego uma quase queda. Ainda assim, avançou, porque a marina chamava.
E quando alcançou a enseada, deu-se como nos contos antigos: o que era porto se ergueu em forma de mulher. Era a Marina mulher.
Seus cabelos longos, vermelhos, ardiam como fogo refletido nas ondas escuras. Seus olhos eram olhos de lama, não lama morta, mas viva, como os rios do Pantanal quando se confundem com a terra: ora verde, ora cinza, ora avelã. Eram olhos que conheciam o fundo e, ainda assim, retornavam sempre à superfície.
Ela caminhava sobre as águas turvas como quem atravessa dimensões. E só o fato de estar ali, firme sobre o barro, dava esperança aos que jaziam soterrados. Os que ainda respiravam pensavam: “Se ela conseguiu, nós também podemos nadar um pouco mais.”
Hira, assombrada, perguntou de onde vinha tamanha nobreza:
— Seria você filha de reis? Traz sangue de realeza?
Quis saber Hira.
Marina sorriu, suave como maré mansa:
— Meu pai não fugiu. Ele vivia da beira das ondas, lançava redes e vendia o que o mar lhe dava. Um dia a maré o levou. Foi ele quem me ensinou a ler as marés e a não temer correntezas. Minha mãe buscou sempre banquetes maiores. Não se saciava do pão de um pobre pescador. Correu atrás de salões iluminados, de mesas fartas, de espelhos que a engrandecessem. Inchou de vaidade como odre cheio de vento, e partiu com os que amam apenas a si mesmos.
Assim, Marina aprendera a mergulhar: pelo pai, que lhe dera o mar como escola; e pela mãe, que a obrigara a carregar ausências e a nadar em águas turvas desde cedo.
Enquanto Hira absorvia essas palavras, outra presença surgiu. Das águas barrentas, caminhando sem peso, apareceu a Xamã.
Seus cabelos lembravam raízes, sua pele lembrava troncos, seus olhos lembravam brasas antigas. Mas não era estranha: Hira a reconheceu como parte de si mesma. Ela estava em seu sangue, em sua pele, na sua respiração. Fazia parte da sua sensualidade ancestral: o ritmo do corpo, o sopro do desejo, a vibração que antecede qualquer palavra.
A Xamã não falava como quem dá instruções. Falava andando, como quem escreve poemas invisíveis com os pés. Cada gesto era enigma, cada olhar era metáfora.
E sua voz soou como canto de pássaro esquecido:
— Quem mergulha sem saber o peso da luz, se cega. Quem estende os braços sem antes erguer-se, se parte. Abre teus olhos dentro do barro, Hira. Deixa que o sol atravesse tua lama. Então, quando tua pele lembrar o caminho da claridade, teus braços poderão sustentar outros.
E assim como veio, a Xamã se calou, continuando a andar como poema, dissolvendo-se em ritmo mais do que em carne.
Hira permaneceu entre Marina e a Xamã. Uma mostrava o caminho para atravessar dimensões, a outra lembrava as raízes que ardiam dentro dela. E ali, na superfície pesada da lama, Hira compreendeu: antes de salvar, precisaria aprender a a respirar na propria lama. O ouro fino que buscava nos outros só poderia ser encontrado primeiro em si.
E a lama, que antes parecia prisão, se revelava forja.
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